Recentemente comprei no sebo um livro chamado Paixão de Caboclo, escrito a quatro mãos e dividido em duas partes. Na primeira parte, encontram-se os poemas de LUÍS EDUARDO BARROS FERREIRA; na segunda, estão os dez contos de ADRIANO CÉSAR CURADO. Ao que se depreende da obra, o autores, iniciantes, resolveram se associar para juntar forças e estrear na literatura. Para isso conseguiram as benesses dum mecenas, que lhes patrocinou a obra e proporcionou a sonhada estreia. Além disso, nada mais têm em comum os dois escritores.
LIVRO DE CONTOS E POEMAS “PAIXÃO DE CABOCLO”
CURADO, Adriano César e FERREIRA, Luís Eduardo Barros. Paixão de Caboclo. Goiânia : KELPS, 1999, 185 p.
RESENHA DA OBRA (POESIA)
Os poemas de PAIXÃO DE CABOCLO são de versos livres e exaltam principalmente a melancolia sentida após o término duma relação amorosa. O autor parece buscar dentro de si respostas para o fim dum sentimento que julga perdido e caminha vacilante entremeio ao universo de palavras desconexas. Arriscaria dizer que a obra foi dedicada na surdina a alguém, quem sabe por uma mensagem subliminar que somente o autor (ou talvez nem ele) saberia decifrar.
TRECHO: “Contenho o desejo oculto de gritar,/ soltando a voz ao vento,/ em brados de uma ode à vida,/ graciosa por ser fruto de ternura,/ de quem ouve o canto apaixonado,/ dedicado em meio à noite,/ encharcado de emoção sincera e voluptuosa,/ que domina o momento,/ fazendo perene, eterno,/ o lapso fixo do tempo” (poema Luz, p. 23).
CRÍTICA: A mensagem do amor despedaçado parece ser o tema predileto de LUÍS EDUARDO, embora haje também poemas dedicados a pessoas especiais, como o filho. No que diz respeito à exaltação de sentimentos, é o autor bem sucedido, e sabe ele declamar como ninguém as consequências de uma separação dolorosa. Lembra bastante o teor das músicas sertanejas, fato justificado por ser LUÍS EDUARDO do estado de Goiás. O problema é que o livro se torna muito repetitivo. A dor de cotovelo se estende por páginas e páginas, sempre com a mesma roupagem e derramando lamúrias.
RESENHA DA OBRA (PROSA)
* PAIXÃO DE CABOCLO inicia-se com o conto O BOI DA GUIA, considerado uma complexa composição do autor, com a exploração dos usos e costumes sertanejos e confronto com os resquícios de uma aristocracia escravocrata falida e orgulhosa. A história conta as peripécias do carreiro (condutor de carro de bois) Izarias, que tem de atravessar a cidade de Pirenópolis com seu carro de bois, auxiliado apenas por seu filho César. No caminho de Izarias, no entanto, surgem duas anciãs, que representam a velha fidalguia de origem portuguesa, já sem títulos ou terras, mas ainda assim muito orgulhosa do passado de opulência. A partir daí trava-se um interessante duelo e segue interessante desfecho.
TRECHO: “O chiar lamuriante do carro de bois despertava as mangueiras dos quintais, fazia algumas donzelas espiarem pelas janelas e morria rouco pelas chapadas (...) As cantadeiras de sangra-d'água, untadas com óleo de mamona, aliviavam o cocão, que era uma espécie de mancal sobre o qual girava o eixo do carro de bois, do peso do milho empilhado em riba da mesa de angico”.
CRÍTICA: O BOI DA GUIA é um conto com forte influência do escritor BERNARDO ÉLIS, com uma sintaxe que se aproxima da fase inicial de GUIMARÃES ROSA. Foi tema da redação do concurso público de escrevente do Fórum de Pirenópolis, em 2005.
* O segundo conto que compõe PAIXÃO DE CABOCLO recebe o título de A CAÇADA. Foi o primeiro texto de ficção publicado por ADRIANO CÉSAR CURADO, quando escrevia para o jornal cultural NOVA ERA, na década de 1990. A história narra de forma simples a aventura de um grupo de roceiros para “armar uma espera de caça”. Orientados pelo instinto e autoconfiantes das próprias habilidades, são surpreendidos pela descoberta de que o mato é uma entidade viva e perigosa.
TRECHO: “Seguimos o trilheiro das antas e logo desembocamos no Matão. Aroeiras, cedros e jacarandás entrançavam os troncos na procura do sol. O céu, de tão bonito, parecia conversar com a gente – o entardecer é sempre belo naquelas paragens”.
CRÍTICA: A CAÇADA é a prosa de ficção mais caipira de ADRIANO CÉSAR CURADO, com a reconstrução do modo de se expressar do autêntico roceiro, porém sem se aventurar na construção de períodos fonéticos inovadores. Vê-se aqui, também, influência do escritor BERNARDO ELIS, bem como de HUGO DE CARVALHO RAMOS.
* O GUARDIÃO é o terceiro conto de PAIXÃO DE CABOCLO e representa uma incursão de ADRIANO CÉSAR CURADO pelo dificílimo universo do realismo fantástico. Essa experiência inovadora se mostrará plena e madura nas páginas da novela TRAVESSIA, publicada mais tarde. Narra as aventuras do roceiro BERNARDINO, que rapta a jovem Aninha e a leva para morar numa “choça de taquara e folhas de buriti”. Outro personagem muito real é o cão Chulico, termômetro das tensões e reveses sofridos pelos personagens. Logo todos descobrem a enormidade dos obstáculos que terão de enfrentar. A mensagem de fundo do texto é claramente ecológica, onde o homem paga caro pela degradação do ambiente em que vive.
TRECHO: “Naquela manhã Bernardino saiu meio encabulado por um trilheiro de anta. Estava cansado de lutar contra o mato, mas sentia a obrigação de não entregar a palha com a rapadura – dar-se por vencido. Tinha de resistir. Sua vida era mesmo plantar roça e bicho comer; abrir picadas e ver o mato entupi-las com cipós de todo tipo. Sentia profundo cansaço e uma vontade de abraçar todas as flores do campo”.
CRÍTICA: Em O GUARDIÃO o escritor ADRIANO CÉSAR CURADO sofreu forte influência de José J. Veiga. O universo de ambos é parecido, embora o conta tenha caráter experimental e se sobressai um pouco do conjunto da obra. Impressionante conto, onde não há quem não fique com o coração na mão durante o transcorrer da história e sinta um certo alívio quando finalmente vê o fim da narrativa. Mas que ninguém se engane, uma vez que jamais sairá imune a O GUARDIÃO.
* O quarto conto de PAIXÃO DE CABOCLO é A VINGANÇA DO FALECIDO, prosa de ficção fantástica que a crítica considera o melhor texto já escrito por ADRIANO CÉSAR CURADO.
Baseado numa história real, o conto expõe de forma interessante e jocosa as consequências do ato de Ermínio, o defunto que, em pleno velório, se senta no caixão e provoca uma histeria geral. A história serve de pano de fundo para que o autor elabore um texto irônico sobre a opressão da classe operária e teça uma breve análise da decadência dos coronéis.
TRECHO: “O chão era de terra batida, e aos poucos ia ficando marcado pelas botinas ordinárias dos homens e pelas alpercatas velhas das mulheres. O cheiro de picumã misturava-se ao dos corpos suarentos, produzindo um odor enjoativo. Móveis não havia, exceção do banco onde jazia o morto e dos jiraus de varas, que eram camas. O único cômodo servia para tudo. As senhoras mais idosas trajavam roupas escuras e longas, mas os homens usavam as vestes da lida e alguns sequer haviam se banhado”.
CRÍTICA: Em A VINGANÇA DO FALECIDO vê-se um autor bastante influenciado pelo universo fantástico de GABRIEL GARCIA MARQUES, mas com identificação no livro INCIDENTE EM ANTARES, de ÉRICO VERÍSSIMO.
* O quinto conto de PAIXÃO DE CABOBLO intitula-se O MAESTRO, O PADRE E O CAPETA. Embora trate-se de prosa baseada numa história, de fato protagonizada pelo maestro pirenopolino JOAQUIM PROPÍCIO DE PINA, trisavô de ADRIANO CÉSAR CURADO, nota-se em seu conteúdo um forte tom de crítica irônica. Quando o conto foi escrito, Pirenópolis se dividia entre os que apoiavam as ideias romanizadoras do novo pároco e os que queriam, como o autor, defender a todo custo as tradições.
TRECHO: “Mestre Propício consultou seu luxuoso relógio Patk Philippe de ouro, do tipo patacão. Já era a segunda vez que fazia isso. Estava preocupado. Logo naquele dia, com padre estrangeiro na cidade, e o principal tenor não aparecia. Todos ensaiaram por meses, pois era uma missa das mais solenes -rezada em veneração à Nossa Senhora d'Abadia. Cada cantor exercia um papel bem definido era peça indispensável para a harmonia do conjunto. Portanto, com o desaparecimento do solo vocal, tudo poderia ruir”.
CRÍTICA: Em O MAESTRO, O PADRE E O CAPETA, ADRIANO CÉSAR CURADO dá uma guinada violenta no livro e busca se expressar quase no terreno da crônica, o que demonstra o caráter experimental da obra e revela um jovem escritor na busca do amadurecimento.
* O PEÃO E A PRINCESA é o sexto conto de PAIXÃO DE CABOCLO e é a reprodução da “lenda do sonho” que imperava nos sertões do planalto central e era contada pelos peões ao redor das fogueiras em noite de lua.
TRECHO: “Marinho empurrou a magnífica porta, que abriu num ranger lamurioso. Diante de seus olhos descortinou-se um palácio de maravilhas, repleto de pavimentos, e escadarias que pareciam tocar o céu. E tudo tão alvo que feria os olhos. Entrou meio temeroso, como se invadisse um santuário, imaginando que a qualquer momento seria surpreendido. Mas o palácio parecia abandonado. Apenas o vento marcava presença, uivando nas janelas de formas arcadas. Ficou perplexo com os lustres, a tapeçaria, os móveis. Aquilo tudo parecia irreal, no entanto podia tocar nos objetos, sentir suas formas complexas, seus ângulos obtusos”.
CRÍTICA: O PEÃO E A PRINCESA é outro texto onde ADRIANO CÉSAR CURADO se aproxima do realismos fantástico de JOSÉ J. VEIGA e cria um universo paralelo de sonhos e pesadelos.
* O sétimo conto de PAIXÃO DE CABOBLO é o engraçadíssimo A CONVERSÃO DE SALUSTIANO AGUADO, também baseado no realismo fantástico e com boa dose de criatividade e humor. A história é baseada numa antiga lenda da cidade de Pirenópolis, que contava das aparições dum fantasma montado a cavalo na Rua Direita.
TRECHO: “Um pouco sem equilíbrio, Salustiano se apoiou no cajazeiro do largo. Olhou em torno. Nem um lobisomem na rua, brincou, exceto ele próprio. Depois de várias investidas, dobrou a esquina da rua Nova, que de repente parecia mais estreita, e seguiu naquele seu passo de tonto sem apoio – sempre chutando o pé da dianteira. Deve ter sido mais ou menos por aí que ouviu um tropel de cascos. Fosse quem fosse, vinha numa correia sem rédea. Desconfiado, encostou-se no muro para desocupar o caminho do apressado – certamente alguém na busca de remédio ou brasa para borralho. Mas o tropel, à medida que ia se achegando dele, diminuía o ritmo”.
CRÍTICA: Publicado originalmente no jornal Nova Era, de Pirenópolis, o conto A CONVERSÃO DE SALUSTIANO AGUADO tem muita influência da obra de JOSÉ J. VEIGA, mas revela também um estilo próprio de ADRIANO CÉSAR CURADO, principalmente na construção sintática dos períodos literários.
* SOLEDADE situa-se como o antepenúltimo conto de PAIXÃO DE CABOCLO e sofreu, sem dúvida alguma, grande influência de BERNARDO ÉLIS e GUIMARÃES ROSA, numa época em que o escritor ADRIANO CÉSAR CURADO fazia seus experimentos literários. Cuida do duelo de dois sertanejos pelo coração duma mulher chamada SOLEDADE.
TRECHO: “Sim, aquele encontro só podia mesmo dar em sangue. Os dois caipiras, vendo que Hernesto não se movia, levantaram-se, penduraram a conta, e já saíam com ar de cão manso, quando deram de frente com Couraça. Nisso foram recuando devagar, como se deparassem com uma aparição inusitada. Figueiras ficou pálido feito cera. Apenas Hernesto sorria e pitava, os braços estendidos pelo balcão, as pernas esticadas”.
CRÍTICA: O conto SOLEDADE é bem a fase caipira que fecha PAIXÃO DE CABOCLO nos três últimos contos, onde ADRIANO CÉSAR CURADO mais se aproxima de BERNARDO ÉLIS, com um tempero nostálgico de HUGO DE CARVALHO RAMOS e GUIMARÃES ROSA
* O penúltimo conto de PAIXÃO DE CABOBLO é CAFÉ AMARGO. Trata-se texto bastante divertido, escrito com tal realismo que, a certo momento, é possível até sentir o cheiro do café que emana das xícaras dos personagens. Finíssima crítica de costumes, o conto ironiza com o excesso de agrado do caipira e mostra o choque entre o novo e o antigo.
TRECHO: “Nesse momento entrou Analúcia com bule e xícaras. Daí a pouco o aroma de café fresco invadiu a sala. Encheram-se as xícaras ao nível de transbordar. A dona da casa ficou ali parada, aguardando que os visitantes provassem e elogiassem. Joaquim Seresteiro pegou logo sua xícara e lançou o líquido na goela. José Gutembergue, mais matreiro, aguardou e viu uma lágrima escorrer vacilante pela face enrugada do companheiro. Também pudera, pois o café, além de quente feito tacha de engrossar melado, não continha sequer uma colher de açúcar ou uma lasca de rapadura”.
CRÍTICA: O conto CAFÉ AMARGO é muito divertido. Conta a história de duas visitas que não querem tomar do famoso café encorpado da fazenda, mas são obrigados pela insistência dos anfitriões. Embora seja um grande defensor da conservação dos usos e costumes sertanejos, o ADRIANO CÉSAR CURADO se sente à vontade para expor o ridículo daquilo que considera excessos. Sintaticamente, trata-se de um texto experimental, mas sem nenhuma influência estética digna de nota.
* O livro PAIXÃO DE CABOCLO fecha com o conto homônimo, texto que demonstra a forte sensibilidade do autor ao capitar em profundidade a alma do sertanejo, expondo num corte de anatomia os medos, a cultura machista, os resquícios colonias enrustidos em cada homem simples que lavra a terra.
TRECHO: “Sentado à soleira da casa Julião ainda tremia, e do cano de seu revólver subia uma fumaça fúnebre. Agora tudo estava acabado. Finalmente o tímido corgo de vereda desembocava no mar, e além do mar nada havia. Chiquita jazia morta. Mas junto ia também o desgraçado que arruinava lares, vilipendiando a felicidade alheia”.
CRÍTICA: O contro PAIXÃO DE CABOCLO é, sem dúvida alguma, embrionário para o próximo livro de ADRIANO CÉSAR CURADO, a premiada novela TRAVESSIA, que virá dois anos mais tarde. O conto é um texto descaradamente baseado em BERNARDO ÉLIS e seu sertão violento mas saudosista. O autor não se deixa levar por pragmatismo incoerentes e nem apregoa um sentido para o inusitado que, de repente, cercam os personagens e os leva para um beco sem saída.