Memorial do Convento


LIVRO ROMANCE “MEMORIAL DO CONVENTO”
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 35ª ed. 2008, 347 p.

RESENHA DA OBRA
MEMORIAL DO CONVENTO foi publicado inicialmente no ano de 1982, e é por muitos considerado o melhor livro do autor, ao lado de O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, A CAVERNA e O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS.
A história ocorre no período da construção do riquíssimo convento de Mafra, quando el-rei D. João V cumpre a promessa feita aos franciscanos de que, caso lhe nascesse um herdeiro, mandaria levantar a obra para a congregação. Mas a história não trata apenas desse fato, pois corre paralelo a narrativa da construção duma passarola pelo padre Bartolomeu e a do romance de Baltasar Sete-sóis e Blimunda Sete-luas.
O interessante nesta obra é que o autor não se dispôs a escrever um livro que retratasse puramente fatos históricos, mas sim mescla a ficção com a realidade e cobre tudo com o manto do fantástico, técnica argumentativa que dá ao leitor a sensação de que está dentro daquele episódio da história lusitana.
De fina ironia, satiriza o autor os usos e costumes da Igreja Católica da época, torna os membros da família real caricaturas e exalta os trabalhadores do convento, tornando-os os verdadeiros heróis da trama.

ESTRUTURA DO ROMANCE
Embora não haja nenhuma divisão dos capítulos, podemos dizer que são 25. A história se estende por 22 anos (1717-1739). O narrador é onisciente, ora está no presente com as personagens, ora avança no tempo e nos deixa entrever algum acontecimento por vir. O discurso acontece sem travessão, as falas se dão simplesmente por uma maiúscula após uma vírgula. O foco narrativo do romance é o cambiante (ou múltiplo), oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, de acordo com a vontade do narrador.
A grande inovação do romance também está na apresentação das personagens. Enquanto um livro tradicional de romance histórico exalta as façanhas das personagens reais e se esquece das secundárias, SARAMAGO inverte a lógica e cuida bem dos peões que labutaram na construção do Convento de Mafra, mas trata dos reis como caricaturas ridículas.
Entre as personagens reais estão: D. João V, rei de Portugal, apresentado como um molestador de freiras e manipulado pelo clero. D. Ana Maria Josefa, mais tarde rainha, uma mulher submissa que quer dar um herdeiro ao rei. O padre brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vulgo O Voador, oposto do clero com mentalidade medieval, e que morre louco. O músico italiano Domênico Scarlatti.
Já as personagens da ficção são delicadas e corajosas, e ao contrário do reis, apresentam-se como seres humanos comuns lidando com os reais problemas do cotidiano – dinheiro para comida, assistir missas para escapar dos olhos da Inquisição. Assim é Blimunda Sete-Luas, que tem o dom de, ao se manter em jejum, ver as pessoas por dentro; apaixona-se por Baltasar, com que convive maritalmente e contra os preceitos religiosos. Outra grande personagem é Baltasar Sete-Sóis, ex-soldado que perdeu a mão esquerda na guerra mas mandou fabricar um gancho que serve tanto para comer quando para matar. As outras personagens menos importantes são Inês Antônia (irmã de Baltazar), Marta Maria (mãe de Baltazar) e João Francisco (pai de Baltazar), João Elvas, Manuel Milho, José pequeno e Álvaro Diogo.

TRECHO: “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça”.

CRÍTICA: MEMORIA DO CONVENTO é muito bem escrito. JOSÉ SARAMAGO consegue criar uma prosa de ficção tão real que prende o leitor até a última página da obra. Ora está ele no tempo presente e ora passa sem aviso algum para o passado ou avança no futuro, mas essa técnica narrativa dá ritmo à leitura e alcança o objetivo de aproximar ficção e realidade. Ao mesclar personagens reais com outras criadas, SARAMAGO nos transporta para dentro do fato histórico, conduz-no por passeios interessantíssimos pela Portugal do século XVIII, pouco antes do terrível terremoto que devastou Lisboa. Acompanhando a saga de Baltasar Sete-sóis somos levados aos labirintos do poder real da época, constituído de soberanos fracos e imbecis, mas também conhecemos os verdadeiros heróis portugueses, que é seu povo. O clero atormenta a vida de todo mundo, obriga os reis a comer em sua mesa, ameaça o progresso do intelecto humano e volta e meia manda um popular para a fogueira. Basta apenas cismar com alguém.