sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dom Casmurro




LIVRO ROMANCE DOM CASMURRO
ASSIS, Machado. Dom Casmurro: São Paulo: Martin Claret, 2002, 223 p.


Esse é considerado por muitos como o livro mais profundo de Machado de Assis, uma obra prima da literatura universal, trabalho que se tornou leitura obrigatória de universidades, escritores e estudiosos da língua portuguesa.


RESENHA DA OBRA

Bentinho é o Dom Casmurro, que decide “atar as duas pontas de sua vida”. Então, resolve narrar sua história. Ele mora em Matacavalos com sua mãe Dona Glória. Bentinho possuía uma vizinha que conviveu como "irmã-namorada" dele, Capitolina, a Capitu. Seu projeto de vida era claro. Sua mãe havia feito uma promessa de ele ir ao seminário e tornar-se padre. Cumprindo a promessa, Bentinho vai, embora sempre com vontade de sair. Se se tornasse padre, não poderia casar com Capitu. Finalmente sai e vai para o exterior. 


Quando retorna do exterior, Bentinho consegue casar com Capitu. Desde os tempos de seminário, ele era amigo de Escobar, agora casado e amigo íntimo do casal. Nasce o filho de Capitu, Ezequiel. Escobar falece e durante o seu velório Bentinho percebe que Capitu não chorava, mas aguçava um sentimento fortíssimo. A partir daí, começa o drama de Bentinho. Ele acha que o seu filho é a cara de Escobar. Lembra-se que já havia encontrado, algumas vezes, Capitu e Escobar sozinhos. Embora confiasse no amigo, que era casado e tinha até filha, o desespero de Bentinho é imenso.


CRÍTICA: Essa é a tríplice análise de um foco, visto no ponto de vista de uma mente conturbada, que é a de Bentinho. Comparo-o ao drama Othello, a luta eterna entre o bem o mal. Aqui Machado de Assis consegue incutir no leitor um discurso salpicado de objetividade (narra às claras o medo da traição) e de subjetivismo (ressentimento), naquela dubiedade que não terá solução aplausível. A técnica machadiana é terrível, pois dá vida ao narrador que afirma que foi  traído, mas o leitor não sabe se ele mente, se se ilude ou diz a verdade.


TRECHO: “Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem tramelas; abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu.. entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso à doente e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório; era a terapêutica habitual do médico”.


sexta-feira, 20 de abril de 2012

ALÉTHEIA



        LIVRO ROMANCE ALÉTHEIA -  DAWN, Clara. Alétheia. Goiânia: KELPS, 2008, 209 p.


O livro é estreia da escritora CLARA DAWN no romance. Confeccionado em papel reciclado e com interessante capa, embora o título não seja muito feliz. Falta também dados biográficos da escritora, o que dificulta o trabalho de catalogação da obra.


RESENHA DA OBRA

Análise de três capítulos como noção global do trabalho.
* ALÉTHEIA inicia-se com a narração, em primeira pessoa, do suicídio da personagem Oscar, que culpa seu melhor amigo, Vicente, por seus infortúnios e deixa um bilhete de despedida. Trata-se de cena forte e escrita como se o leitor estivesse numa sala de cinema americano – a luz acaba, a chuva cai e um morto aguarda na sala.
TRECHO: “Naquele momento, eu fui tomado por uma comoção jamais sentida e chorei pedindo-lhe perdão e prometendo respeitá-lo a partir daquele instante. Nem assim ele moveu-se; e isso me perturbou. Mais uma vez, o clarão invadiu o quarto, fazendo-me ver seus olhos esbugalhados”.
CRÍTICA: Nesta parte do romance que CLARA DAWN chama de PRÓLOGO, mas que na verdade é já parte do corpo da obra, há uma leve pitada de GRACILIANO RAMOS em ANGÚSTIA, quando a solidão, a escuridão e a perturbação íntima desembocam numa situação extremamente aflitiva.


* No capítulo II, a história dá um salto para um ano adiante, mas toma como referencial a morte de Oscar. Vale lembrar que essa divisão por capítulos não existe no livro, mas será considerada neste texto, para melhor compreensão do romance e facilidade de seu manuseamento. A personagem Vicente vai encontrar sua terapeuta, Flávia Montês, e tratar da culpa que carrega pela morte do amigo Oscar, que era homossexual e sentia-se discriminado por Vicente.
TRECHO: “Levantei-me e caminhei pela sala. Surpreendi-me com a atitude da Dra. Flávia. Naquele dia, ela não fez o habitual: não fechou as cortinas, nem colocou aquela música sacra, muito menos exigiu que eu fizesse os exercícios de respiração”.
CRÍTICA: Há no livro a opção de colocar os diálogos em itálico que fica esteticamente bem. Melhor deixá-los como está no restante do texto, pois não se trata de uma citação especial ou, por exemplo, da narrativa de um sonho. Até aqui ainda não conhecemos as características livres de um romance e o livro se assemelha bastante a uma novela, com descrições quadro a quadro. Pesa igualmente desfavorável na prosa o fato de a escritora segurar bastante o período com excesso de pontuação. A tendência contemporânea é dar maior elasticidade e ritmo para auxiliar o leitor. São usados também vocábulos que pouco coloquias modernamente – “não entendia como um homem poderia não ter libido por garotas”.


* No capítulo III há uma história terrível. Uma mãe se prostitui, enquanto o filho, encharcado de gasolina aguarda no porão um castigo. A autora corta repentinamente a história e nos leva para uma cidade no interior de São Paulo, onde a cidade se desdobra. Depois de cobranças mútuas entre as personagens, chega-se a perder o fôlego de medo que a mãe queime o filho molhado de gasolina. No desfecho, ela joga o cigarro sobre o mesmo.
TRECHO: “Ele sentia frio, e todo o seu corpo franzino, molhado de gasolina, causava-lhe uma sensação vertiginosa. Já nem lembrava mais quando fora a última vez que brincou de bola com os amigos; certamente, quando seu pai ainda morava com aquela vagabunda. Não devia odiá-la, pois a vadia era sua mãe”.
CRÍTICA: A criação do cenário e a disposição das personagens neste capítulo foram muito bem estudados. O desdobramento da história em planos distintos foi feliz – num cômodo está a prostituta que trabalha ruidosamente, noutro o menino que aguarda o destino.


Considerações finais: Alétheia é uma romance muito bom, que lembra Machado de Assis em seus primeiros passos no caminho das letras e também nos reporta à análise do lado obscuro em cada um de nós. Há irregularidades, sim, mas todas elas não comprometem o conjunto da obra, que consegue segurar o leitor até o final desfecho.




terça-feira, 20 de julho de 2010

CAIM



LIVRO “CAIM”

SARAMAGO, José. Caim, São Paulo : Companhia das Letras, 2009, 172 p.


RESENHA DA OBRA

CAIM é último livro publicado por JOSÉ SARAMAGO, que morreu no dia 18.07.2010. O romance narra com ironia a história bíblica de Caim, filho de Adão e Eva, que matou o irmão Abel. Caim cumpre a determinação de Deus de vagar errante pelo mundo após seu crime, mas em dado instante da narrativa, começa também a viajar no tempo. Ele transita, repentinamente, por diversas passagens do Antigo Testamento. A personagem está presente na provação de Abraão para com seu filho, na condenação das aldeias de Sodoma e Gomorra, na passagem do bezerro de ouro à época de Moisés, na casa de Jó e, por fim, na arca de Noé. Em todos esses episódios Saramago analisa as ações de Deus para constatar que o mesmo “não é de confiança”, como admitiria numa entrevista posterior.


TRECHO: “No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida (...). Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Ato contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar” (p. 79/80)


CRÍTICA: O romance CAIM está longe de ser uma das obras primas de JOSÉ SARAMAGO. Diria até que, como PHILIP ROTH, o português é um grande escritor que pode se dar ao luxo de pequenas obras. Não há grandes inovações estéticas no livro, embora o escritor repita suas fórmulas consagradas, como narrador onisciente (num momento está no presente com as personagens, noutro avança no tempo e conta acontecimento futuros), discurso sem travessão, foco narrativo cambiante oscilando entre a primeira e a terceira pessoa etc. Mas há também escolhas infelizes, como o fato de escrever os nomes próprios com letra minúsculas, o que tem como resultado apenas confundir o leitor e dar ao texto uma má estética. Em CAIM, Saramago, um publicamente declarado ateu, reacende as mesmas polêmicas de O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, publicado vinte anos antes.


segunda-feira, 22 de março de 2010

INDIGNAÇÃO



LIVRO “INDIGNAÇÃO”
ROTH, Philip. Indignação, São Paulo : Companhia das Letras, 2008, 170 p.

RESENHA DA OBRA

O romance conta o drama de Marcus Messner, soldado ferido na Guerra da Coreia e que narra sua história sob o efeito da morfina, num estado de semiconsciência infernal. Isso lembra um pouco o excelente “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Marcus nasceu em Newark, filho único dum açougueiro kosher, e até seus dezoito anos trabalhava com o pai, uma figura super-protetora e de poucos diálogos, que temia que algo ruim pudesse acontecer ao filho. E para escapar dessa proteção demasiada, vai o protagonista estudar na universidade de Winesburg. Embora esperasse encontrar a paz, ele vê os obstáculos crescerem cada vez mais, pois trata-se duma escola tradicional e de formação cristã, e ele é um ateu, embora de pais judeus. Marcus é um bom moço, mas seus colegas de quarto se comportam de maneira deplorável. Tem também o problema das fraternidades que assediam incansavelmente os estudantes, e inclusive uma que busca a minoria de alunos judeus.

Marcus quer mesmo é estudar, motivo pelo qual busca o isolamento dos demais e até trabalha para pagar os estudos. Ele é um aluno deveras exemplar, com as melhores notas, até que se apaixona por uma colega, Olivia Hutton, e seus problemas então crescem assustadoramente. O histórico da moça é terrível, pois já tentou o suicídio e pratica libertinagem sexual com muitos da escola. Marcus, ao descobrir que não é o único que tem a atenção de Olivia, desmorona de vez numa queda vertiginosa.

TRECHO: “Havia doze fraternidades no campus, mas só duas admitiam judeus: uma, bem pequena e composta unicamente de judeus, tinha uns cinquenta membros; a outra era uma fraternidade não sectária ainda menor, fundada lá mesmo por um grupo de estudantes idealistas que aceitavam qualquer pessoa que pudessem agarrar. As outras dez estavam reservadas aos cristãos brancos, um esquema que ninguém imaginaria desafiar num campus que tanto se orgulhava de suas tradições” (p. 24).

CRÍTICA: A trágica historia de Marcus é temperada com bastante ironia, característica central da obra de PHILIP ROTH. Composto por um escritor maduro, que já tem o nome perpetuado na história americana, não sente ele necessidade de agradar e nem preocupação em pisar em ovos. Ele apenas acontece, e ainda assim consegue montar uma história espetacular. Obviamente que o romance está bem aquém da série de romances protagonizada por Nathan Zuckerman, sarcástico quebra-cabeça da sociedade estadunidense. Mas mesmo não sendo o máximo, consegue ficar longe do mínimo mediano do restante das produção literária da atualidade.

segunda-feira, 15 de março de 2010

PAIXÃO DE CABOCLO




Recentemente comprei no sebo um livro chamado Paixão de Caboclo, escrito a quatro mãos e dividido em duas partes. Na primeira parte, encontram-se os poemas de LUÍS EDUARDO BARROS FERREIRA; na segunda, estão os dez contos de ADRIANO CÉSAR CURADO. Ao que se depreende da obra, o autores, iniciantes, resolveram se associar para juntar forças e estrear na literatura. Para isso conseguiram as benesses dum mecenas, que lhes patrocinou a obra e proporcionou a sonhada estreia. Além disso, nada mais têm em comum os dois escritores.

LIVRO DE CONTOS E POEMAS “PAIXÃO DE CABOCLO”
CURADO, Adriano César e FERREIRA, Luís Eduardo Barros. Paixão de Caboclo. Goiânia : KELPS, 1999, 185 p.

RESENHA DA OBRA (POESIA)

Os poemas de PAIXÃO DE CABOCLO são de versos livres e exaltam principalmente a melancolia sentida após o término duma relação amorosa. O autor parece buscar dentro de si respostas para o fim dum sentimento que julga perdido e caminha vacilante entremeio ao universo de palavras desconexas. Arriscaria dizer que a obra foi dedicada na surdina a alguém, quem sabe por uma mensagem subliminar que somente o autor (ou talvez nem ele) saberia decifrar.
TRECHO: “Contenho o desejo oculto de gritar,/ soltando a voz ao vento,/ em brados de uma ode à vida,/ graciosa por ser fruto de ternura,/ de quem ouve o canto apaixonado,/ dedicado em meio à noite,/ encharcado de emoção sincera e voluptuosa,/ que domina o momento,/ fazendo perene, eterno,/ o lapso fixo do tempo” (poema Luz, p. 23).
CRÍTICA: A mensagem do amor despedaçado parece ser o tema predileto de LUÍS EDUARDO, embora haje também poemas dedicados a pessoas especiais, como o filho. No que diz respeito à exaltação de sentimentos, é o autor bem sucedido, e sabe ele declamar como ninguém as consequências de uma separação dolorosa. Lembra bastante o teor das músicas sertanejas, fato justificado por ser LUÍS EDUARDO do estado de Goiás. O problema é que o livro se torna muito repetitivo. A dor de cotovelo se estende por páginas e páginas, sempre com a mesma roupagem e derramando lamúrias.

RESENHA DA OBRA (PROSA)

* PAIXÃO DE CABOCLO inicia-se com o conto O BOI DA GUIA, considerado uma complexa composição do autor, com a exploração dos usos e costumes sertanejos e confronto com os resquícios de uma aristocracia escravocrata falida e orgulhosa. A história conta as peripécias do carreiro (condutor de carro de bois) Izarias, que tem de atravessar a cidade de Pirenópolis com seu carro de bois, auxiliado apenas por seu filho César. No caminho de Izarias, no entanto, surgem duas anciãs, que representam a velha fidalguia de origem portuguesa, já sem títulos ou terras, mas ainda assim muito orgulhosa do passado de opulência. A partir daí trava-se um interessante duelo e segue interessante desfecho.
TRECHO: “O chiar lamuriante do carro de bois despertava as mangueiras dos quintais, fazia algumas donzelas espiarem pelas janelas e morria rouco pelas chapadas (...) As cantadeiras de sangra-d'água, untadas com óleo de mamona, aliviavam o cocão, que era uma espécie de mancal sobre o qual girava o eixo do carro de bois, do peso do milho empilhado em riba da mesa de angico”.
CRÍTICA: O BOI DA GUIA é um conto com forte influência do escritor BERNARDO ÉLIS, com uma sintaxe que se aproxima da fase inicial de GUIMARÃES ROSA. Foi tema da redação do concurso público de escrevente do Fórum de Pirenópolis, em 2005.


* O segundo conto que compõe PAIXÃO DE CABOCLO recebe o título de A CAÇADA. Foi o primeiro texto de ficção publicado por ADRIANO CÉSAR CURADO, quando escrevia para o jornal cultural NOVA ERA, na década de 1990. A história narra de forma simples a aventura de um grupo de roceiros para “armar uma espera de caça”. Orientados pelo instinto e autoconfiantes das próprias habilidades, são surpreendidos pela descoberta de que o mato é uma entidade viva e perigosa.
TRECHO: “Seguimos o trilheiro das antas e logo desembocamos no Matão. Aroeiras, cedros e jacarandás entrançavam os troncos na procura do sol. O céu, de tão bonito, parecia conversar com a gente – o entardecer é sempre belo naquelas paragens”.
CRÍTICA: A CAÇADA é a prosa de ficção mais caipira de ADRIANO CÉSAR CURADO, com a reconstrução do modo de se expressar do autêntico roceiro, porém sem se aventurar na construção de períodos fonéticos inovadores. Vê-se aqui, também, influência do escritor BERNARDO ELIS, bem como de HUGO DE CARVALHO RAMOS.



* O GUARDIÃO é o terceiro conto de PAIXÃO DE CABOCLO e representa uma incursão de ADRIANO CÉSAR CURADO pelo dificílimo universo do realismo fantástico. Essa experiência inovadora se mostrará plena e madura nas páginas da novela TRAVESSIA, publicada mais tarde. Narra as aventuras do roceiro BERNARDINO, que rapta a jovem Aninha e a leva para morar numa “choça de taquara e folhas de buriti”. Outro personagem muito real é o cão Chulico, termômetro das tensões e reveses sofridos pelos personagens. Logo todos descobrem a enormidade dos obstáculos que terão de enfrentar. A mensagem de fundo do texto é claramente ecológica, onde o homem paga caro pela degradação do ambiente em que vive.
TRECHO: “Naquela manhã Bernardino saiu meio encabulado por um trilheiro de anta. Estava cansado de lutar contra o mato, mas sentia a obrigação de não entregar a palha com a rapadura – dar-se por vencido. Tinha de resistir. Sua vida era mesmo plantar roça e bicho comer; abrir picadas e ver o mato entupi-las com cipós de todo tipo. Sentia profundo cansaço e uma vontade de abraçar todas as flores do campo”.
CRÍTICA: Em O GUARDIÃO o escritor ADRIANO CÉSAR CURADO sofreu forte influência de José J. Veiga. O universo de ambos é parecido, embora o conta tenha caráter experimental e se sobressai um pouco do conjunto da obra. Impressionante conto, onde não há quem não fique com o coração na mão durante o transcorrer da história e sinta um certo alívio quando finalmente vê o fim da narrativa. Mas que ninguém se engane, uma vez que jamais sairá imune a O GUARDIÃO.

* O quarto conto de PAIXÃO DE CABOCLO é A VINGANÇA DO FALECIDO, prosa de ficção fantástica que a crítica considera o melhor texto já escrito por ADRIANO CÉSAR CURADO.
Baseado numa história real, o conto expõe de forma interessante e jocosa as consequências do ato de Ermínio, o defunto que, em pleno velório, se senta no caixão e provoca uma histeria geral. A história serve de pano de fundo para que o autor elabore um texto irônico sobre a opressão da classe operária e teça uma breve análise da decadência dos coronéis.
TRECHO: “O chão era de terra batida, e aos poucos ia ficando marcado pelas botinas ordinárias dos homens e pelas alpercatas velhas das mulheres. O cheiro de picumã misturava-se ao dos corpos suarentos, produzindo um odor enjoativo. Móveis não havia, exceção do banco onde jazia o morto e dos jiraus de varas, que eram camas. O único cômodo servia para tudo. As senhoras mais idosas trajavam roupas escuras e longas, mas os homens usavam as vestes da lida e alguns sequer haviam se banhado”.
CRÍTICA: Em A VINGANÇA DO FALECIDO vê-se um autor bastante influenciado pelo universo fantástico de GABRIEL GARCIA MARQUES, mas com identificação no livro INCIDENTE EM ANTARES, de ÉRICO VERÍSSIMO.

* O quinto conto de PAIXÃO DE CABOBLO intitula-se O MAESTRO, O PADRE E O CAPETA. Embora trate-se de prosa baseada numa história, de fato protagonizada pelo maestro pirenopolino JOAQUIM PROPÍCIO DE PINA, trisavô de ADRIANO CÉSAR CURADO, nota-se em seu conteúdo um forte tom de crítica irônica. Quando o conto foi escrito, Pirenópolis se dividia entre os que apoiavam as ideias romanizadoras do novo pároco e os que queriam, como o autor, defender a todo custo as tradições.
TRECHO: “Mestre Propício consultou seu luxuoso relógio Patk Philippe de ouro, do tipo patacão. Já era a segunda vez que fazia isso. Estava preocupado. Logo naquele dia, com padre estrangeiro na cidade, e o principal tenor não aparecia. Todos ensaiaram por meses, pois era uma missa das mais solenes -rezada em veneração à Nossa Senhora d'Abadia. Cada cantor exercia um papel bem definido era peça indispensável para a harmonia do conjunto. Portanto, com o desaparecimento do solo vocal, tudo poderia ruir”.
CRÍTICA: Em O MAESTRO, O PADRE E O CAPETA, ADRIANO CÉSAR CURADO dá uma guinada violenta no livro e busca se expressar quase no terreno da crônica, o que demonstra o caráter experimental da obra e revela um jovem escritor na busca do amadurecimento.

* O PEÃO E A PRINCESA é o sexto conto de PAIXÃO DE CABOCLO e é a reprodução da “lenda do sonho” que imperava nos sertões do planalto central e era contada pelos peões ao redor das fogueiras em noite de lua.
TRECHO: “Marinho empurrou a magnífica porta, que abriu num ranger lamurioso. Diante de seus olhos descortinou-se um palácio de maravilhas, repleto de pavimentos, e escadarias que pareciam tocar o céu. E tudo tão alvo que feria os olhos. Entrou meio temeroso, como se invadisse um santuário, imaginando que a qualquer momento seria surpreendido. Mas o palácio parecia abandonado. Apenas o vento marcava presença, uivando nas janelas de formas arcadas. Ficou perplexo com os lustres, a tapeçaria, os móveis. Aquilo tudo parecia irreal, no entanto podia tocar nos objetos, sentir suas formas complexas, seus ângulos obtusos”.
CRÍTICA: O PEÃO E A PRINCESA é outro texto onde ADRIANO CÉSAR CURADO se aproxima do realismos fantástico de JOSÉ J. VEIGA e cria um universo paralelo de sonhos e pesadelos.

* O sétimo conto de PAIXÃO DE CABOBLO é o engraçadíssimo A CONVERSÃO DE SALUSTIANO AGUADO, também baseado no realismo fantástico e com boa dose de criatividade e humor. A história é baseada numa antiga lenda da cidade de Pirenópolis, que contava das aparições dum fantasma montado a cavalo na Rua Direita.
TRECHO: “Um pouco sem equilíbrio, Salustiano se apoiou no cajazeiro do largo. Olhou em torno. Nem um lobisomem na rua, brincou, exceto ele próprio. Depois de várias investidas, dobrou a esquina da rua Nova, que de repente parecia mais estreita, e seguiu naquele seu passo de tonto sem apoio – sempre chutando o pé da dianteira. Deve ter sido mais ou menos por aí que ouviu um tropel de cascos. Fosse quem fosse, vinha numa correia sem rédea. Desconfiado, encostou-se no muro para desocupar o caminho do apressado – certamente alguém na busca de remédio ou brasa para borralho. Mas o tropel, à medida que ia se achegando dele, diminuía o ritmo”.
CRÍTICA: Publicado originalmente no jornal Nova Era, de Pirenópolis, o conto A CONVERSÃO DE SALUSTIANO AGUADO tem muita influência da obra de JOSÉ J. VEIGA, mas revela também um estilo próprio de ADRIANO CÉSAR CURADO, principalmente na construção sintática dos períodos literários.

* SOLEDADE situa-se como o antepenúltimo conto de PAIXÃO DE CABOCLO e sofreu, sem dúvida alguma, grande influência de BERNARDO ÉLIS e GUIMARÃES ROSA, numa época em que o escritor ADRIANO CÉSAR CURADO fazia seus experimentos literários. Cuida do duelo de dois sertanejos pelo coração duma mulher chamada SOLEDADE.
TRECHO: “Sim, aquele encontro só podia mesmo dar em sangue. Os dois caipiras, vendo que Hernesto não se movia, levantaram-se, penduraram a conta, e já saíam com ar de cão manso, quando deram de frente com Couraça. Nisso foram recuando devagar, como se deparassem com uma aparição inusitada. Figueiras ficou pálido feito cera. Apenas Hernesto sorria e pitava, os braços estendidos pelo balcão, as pernas esticadas”.
CRÍTICA: O conto SOLEDADE é bem a fase caipira que fecha PAIXÃO DE CABOCLO nos três últimos contos, onde ADRIANO CÉSAR CURADO mais se aproxima de BERNARDO ÉLIS, com um tempero nostálgico de HUGO DE CARVALHO RAMOS e GUIMARÃES ROSA

* O penúltimo conto de PAIXÃO DE CABOBLO é CAFÉ AMARGO. Trata-se texto bastante divertido, escrito com tal realismo que, a certo momento, é possível até sentir o cheiro do café que emana das xícaras dos personagens. Finíssima crítica de costumes, o conto ironiza com o excesso de agrado do caipira e mostra o choque entre o novo e o antigo.
TRECHO: “Nesse momento entrou Analúcia com bule e xícaras. Daí a pouco o aroma de café fresco invadiu a sala. Encheram-se as xícaras ao nível de transbordar. A dona da casa ficou ali parada, aguardando que os visitantes provassem e elogiassem. Joaquim Seresteiro pegou logo sua xícara e lançou o líquido na goela. José Gutembergue, mais matreiro, aguardou e viu uma lágrima escorrer vacilante pela face enrugada do companheiro. Também pudera, pois o café, além de quente feito tacha de engrossar melado, não continha sequer uma colher de açúcar ou uma lasca de rapadura”.
CRÍTICA: O conto CAFÉ AMARGO é muito divertido. Conta a história de duas visitas que não querem tomar do famoso café encorpado da fazenda, mas são obrigados pela insistência dos anfitriões. Embora seja um grande defensor da conservação dos usos e costumes sertanejos, o ADRIANO CÉSAR CURADO se sente à vontade para expor o ridículo daquilo que considera excessos. Sintaticamente, trata-se de um texto experimental, mas sem nenhuma influência estética digna de nota.

* O livro PAIXÃO DE CABOCLO fecha com o conto homônimo, texto que demonstra a forte sensibilidade do autor ao capitar em profundidade a alma do sertanejo, expondo num corte de anatomia os medos, a cultura machista, os resquícios colonias enrustidos em cada homem simples que lavra a terra.
TRECHO: “Sentado à soleira da casa Julião ainda tremia, e do cano de seu revólver subia uma fumaça fúnebre. Agora tudo estava acabado. Finalmente o tímido corgo de vereda desembocava no mar, e além do mar nada havia. Chiquita jazia morta. Mas junto ia também o desgraçado que arruinava lares, vilipendiando a felicidade alheia”.
CRÍTICA: O contro PAIXÃO DE CABOCLO é, sem dúvida alguma, embrionário para o próximo livro de ADRIANO CÉSAR CURADO, a premiada novela TRAVESSIA, que virá dois anos mais tarde. O conto é um texto descaradamente baseado em BERNARDO ÉLIS e seu sertão violento mas saudosista. O autor não se deixa levar por pragmatismo incoerentes e nem apregoa um sentido para o inusitado que, de repente, cercam os personagens e os leva para um beco sem saída.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Memorial do Convento



LIVRO ROMANCE “MEMORIAL DO CONVENTO”

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 35ª ed. 2008, 347 p.


RESENHA DA OBRA

MEMORIAL DO CONVENTO foi publicado inicialmente no ano de 1982, e é por muitos considerado o melhor livro do autor, ao lado de O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, A CAVERNA e O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS.

A história ocorre no período da construção do riquíssimo convento de Mafra, quando el-rei D. João V cumpre a promessa feita aos franciscanos de que, caso lhe nascesse um herdeiro, mandaria levantar a obra para a congregação. Mas a história não trata apenas desse fato, pois corre paralelo a narrativa da construção duma passarola pelo padre Bartolomeu e a do romance de Baltasar Sete-sóis e Blimunda Sete-luas.

O interessante nesta obra é que o autor não se dispôs a escrever um livro que retratasse puramente fatos históricos, mas sim mescla a ficção com a realidade e cobre tudo com o manto do fantástico, técnica argumentativa que dá ao leitor a sensação de que está dentro daquele episódio da história lusitana.

De fina ironia, satiriza o autor os usos e costumes da Igreja Católica da época, torna os membros da família real caricaturas e exalta os trabalhadores do convento, tornando-os os verdadeiros heróis da trama.


ESTRUTURA DO ROMANCE

Embora não haja nenhuma divisão dos capítulos, podemos dizer que são 25. A história se estende por 22 anos (1717-1739). O narrador é onisciente, ora está no presente com as personagens, ora avança no tempo e nos deixa entrever algum acontecimento por vir. O discurso acontece sem travessão, as falas se dão simplesmente por uma maiúscula após uma vírgula. O foco narrativo do romance é o cambiante (ou múltiplo), oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, de acordo com a vontade do narrador.

A grande inovação do romance também está na apresentação das personagens. Enquanto um livro tradicional de romance histórico exalta as façanhas das personagens reais e se esquece das secundárias, SARAMAGO inverte a lógica e cuida bem dos peões que labutaram na construção do Convento de Mafra, mas trata dos reis como caricaturas ridículas.

Entre as personagens reais estão: D. João V, rei de Portugal, apresentado como um molestador de freiras e manipulado pelo clero. D. Ana Maria Josefa, mais tarde rainha, uma mulher submissa que quer dar um herdeiro ao rei. O padre brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vulgo O Voador, oposto do clero com mentalidade medieval, e que morre louco. O músico italiano Domênico Scarlatti.

Já as personagens da ficção são delicadas e corajosas, e ao contrário do reis, apresentam-se como seres humanos comuns lidando com os reais problemas do cotidiano – dinheiro para comida, assistir missas para escapar dos olhos da Inquisição. Assim é Blimunda Sete-Luas, que tem o dom de, ao se manter em jejum, ver as pessoas por dentro; apaixona-se por Baltasar, com que convive maritalmente e contra os preceitos religiosos. Outra grande personagem é Baltasar Sete-Sóis, ex-soldado que perdeu a mão esquerda na guerra mas mandou fabricar um gancho que serve tanto para comer quando para matar. As outras personagens menos importantes são Inês Antônia (irmã de Baltazar), Marta Maria (mãe de Baltazar) e João Francisco (pai de Baltazar), João Elvas, Manuel Milho, José pequeno e Álvaro Diogo.


TRECHO: “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça”.


CRÍTICA: MEMORIA DO CONVENTO é muito bem escrito. JOSÉ SARAMAGO consegue criar uma prosa de ficção tão real que prende o leitor até a última página da obra. Ora está ele no tempo presente e ora passa sem aviso algum para o passado ou avança no futuro, mas essa técnica narrativa dá ritmo à leitura e alcança o objetivo de aproximar ficção e realidade. Ao mesclar personagens reais com outras criadas, SARAMAGO nos transporta para dentro do fato histórico, conduz-no por passeios interessantíssimos pela Portugal do século XVIII, pouco antes do terrível terremoto que devastou Lisboa. Acompanhando a saga de Baltasar Sete-sóis somos levados aos labirintos do poder real da época, constituído de soberanos fracos e imbecis, mas também conhecemos os verdadeiros heróis portugueses, que é seu povo. O clero atormenta a vida de todo mundo, obriga os reis a comer em sua mesa, ameaça o progresso do intelecto humano e volta e meia manda um popular para a fogueira. Basta apenas cismar com alguém.